sábado, 9 de janeiro de 2010

Um filme pelos meus olhos.

PS: Sobre "Blindness" (ou "Ensaio sobre a cegueira"), filme de Fernando Meirelles (2008), adaptado do livro de mesmo nome escrito pelo Nobel José Saramago, em 1995:


Mais que a valentia da mulher do médico, a tirania reproduzida entre as paredes do "depósito humano" pelo rei da Ala 3 e sustentada pelo cego de nascença, a covardia de um grupo de homens ao propor que o sexo fosse moeda de troca por comida, e tantas outras cenas que monopolizam a atenção de grande parte dos expectadores, a leitura do velho negro em relação a tudo que se passava à sua volta foi o que mais me emocionou. Primeiro que a experiência e segurança das pessoas que vivem neste mundo há mais de meio século, me toca tremendamente. Quem pode ousar contestá-los quando em um debate sobre os fenômenos de ação e reação dos quais nem um ser vivo pode escapar?
(Segundo em diante seguem sem marcação).
Pois bem, esse velho havia feito do banheiro a sua moradia, mas ele tinha um rádio. Depois que deram-lhe um lugar no já lotado "dormitório", sempre sorridente, ele transmitiu as informações dos noticiários que ouviu e, quando terminou, percebeu que um silêncio de morte pairava ali. Todos haviam se aglomerado e pareciam esperar. Esperavam, talvez, que seus corpos mergulhassem no "mar de brancura": a única imagem que podiam contemplar através dos olhos súbita e inexplicavelmente cegos. Esperavam as mudanças seguintes à perca de um dos sentidos. Mudanças que exigiam dor e auto negação.
O velho, porém, parecia deliciar-se naquela atmosfera densa e selvagem que induzia todos a se prostrarem diante das próprias fragilidades e instintos. Sem noção do tempo, sentia-se infinito. Uma eternidade caminhando sobre o "mar de leite".
E, quando se caminha sobre o mar, a jornada é igualmente infinita.
Ele sabia que agora que não havia espaço para divisões segundo a classe social, a etnia, o credo ou a beleza. A igualdade de condições tão duras impostas indistintamente os nivelava e os resumia a animais lutando pela sobrevivência. Se não por esperança de um futuro melhor, lutavam simplesmente porque é isso que sempre fizeram os animais em toda a história de sua existência, logo, atendiam a um chamado visceral e primitivo.
Ele decidiu que fazia-se necessário gastar a pouca bateria do seu radinho de mão para embalar aqueles seres tão assustados. A música vira a protagonista do momento, o único remédio que o acaso lhes cedeu. A ala toda era música, os pés registravam o ritmo e, durante aqueles minutos, pareceu ser bom ter apenas as lembranças e fantasias como referência da realidade.
Alguns não se importavam em cobrir suas "vergonhas". Usar roupas seria mesmo a última tentativa de se convencerem civilizados quando não há comida, água potável nem sabonete suficientes.
Quanto ao velho, ele escolheu despir o coração. Seu olhar gentil conquistado pela idade agora traduzia-se na fala mansa à beira de uma fogueira declarando seus desejos à moça. Era o que desejava sua alma.
Até que um deles voltou a enxergar. O fim de um flagelo. Enfim, as poucos a vida de antes seria reconquistada e retornariam à normalidade morna e farta. O trabalho, o contato com os familiares e amigos, a retomada da perseguição aos sonhos... seria o paraíso. Donos de uma gratidão inimitável à liberdade, se destacariam em qualquer grupo com qual escolhessem conviver: são imunes às pequenas agruras do cotidiano e desequilíbrios emocionais que afetam os relacionamentos da nossa era. Superaram desafios infinitamente maiores, sentiram a humilhação no seu sentido mais cru.
Talvez usem dessa nova compreensão para tomar as dores dos tantos oprimidos (semelhante ao que eles foram) espalhados pelos continentes afora. Ou talvez não queiram mais reviver as angústias e a impotência diante de forças implacáveis genericamente nomeadas como 'Corporações financeiras', 'Estado Capitalista', 'Burguesia', 'Globalização', etc.
De qualquer maneira, a história continuará se repetindo em algum lugar do globo. Essa era a condição. E nós aceitamos.

Para os ex-cegos, cada estilhaço voltaria ao seu lugar para recompor o grande quebra-cabeça da "ordem" universal.
Não para o velho negro que voltou a ser refém de seu corpo antigo e perecível.

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